cafezim;

sábado, 29 de março de 2008

Quarta-feira cinza, de cinzas.

Dois livros, novecentas e dezesseis páginas. Quatro dias.

Carnaval. Alguns dias para se prostrar dentro de casa.

O simples fato de se estar ali, com a cara enfiada em algum livro, devorando palavras e dirigindo o meu próprio filme já seria o bastante para me manter fixo na poltrona por várias horas. É claro, se não fosse o fato de um país inteiro estar em festa, imerso na balbúrdia.

Quatro dias de carnaval verde e cinza, com um pequeno guarda-chuva vermelho na capa.


Foi como uma foto. No fundo, meu irmão se divertia com jogos bizarros no computador, enquanto era possível ver uma pontinha do rosto adormecido de minha mãe, pela fresta da porta. Em primeiro plano, a poltrona, a luminária e a menina que roubava livros, em meu colo, contando-me que Liesel era a única sobrevivente da rua Himmel, em Molching.


Assim permanecemos por longas horas, até que passei a reparar em meu irmão, sentado em frente ao computador. Ele vibrava, lógico, com as vitórias no jogo, mas a cada derrota, sua reação era exatamente como a minha, nessas ocasiões: um leve murro na mesa e uma reflexão sobre como evitar o erro. Por alguns instantes, me enxerguei nele e fui além da aparência física e dos sobrenomes idênticos. Como dissera um professor, fui “na gengiva da coisa”. Perscrutei aquela reação e fiz a pergunta cretina: a gente precisa errar primeiro pra depois aprender a evitar o erro? E quando a gente erra e, ainda assim, comete o mesmo erro logo em seguida? Ele está ficando cada vez mais parecido comigo, não fossem os olhos verdes. Aprendendo com os próprios erros. Tentando conserta-los, antes de um tétrico game over.


UMA PEQUENA NOTA:
Isto cabe como uma luva em mim.


Vinte páginas para o fim do livro. Um momento que merece respeito, o meu ostracismo ministrado por mim mesmo. Só eu, a roubadora de livros e a sombra do cajueiro. Vinte páginas de drama, a minha cara de página em branco e mais alguns parágrafos de tristeza e perplexidade. Uma última nota da narradora: “Vocês humanos me assombram”. Talvez este seja o momento mais triste, fúnebre e soturno: fechar o livro sem por o marcador dentro.


UM DEVANEIO:
Será que existe algum livro que nunca acabe?


O céu era cinza neste momento, estático, morto. O restante era verde, com exceção do tronco avermelhado do cajueiro. Livro fechado, pés na grama e uma olhadela rápida para o rio e a ponte. Um caminhão do ABC. Amanhã é dia trabalho.


Talvez a primeira quinta-feira multicor do ano.

Observação

Uma pessoa mais observadora do que eu, na certa teria me observado antes que eu a observasse. Talvez nem precisasse assim de tanta atenção para perceber que eu não estava apenas olhando algo ou alguém. Estava criticando. Afinal, o que separa a observação da crítica é apenas uma linha, tão fina quanto a seda de uma dessas aranhas de canto de rodapé. Essa linha é a mesma que costura as desavenças entre ódio e amor, entre tristeza e felicidade, que zigue-zagueia entre toda uma gama de contrários que se harmonizam, cozendo as barras do equilíbrio precário entre bem e mal.
Aproximadamente sete e meia da noite, eu estava sentado num dos inúmeros bancos do lugar, rodeado de gente por tudo que é lado. Embora todos eles estivessem ali, quase se esfregando em mim, eu era uma espécie de ilha. O próprio conceito de ilha se refere à idéia de uma certa porção de terra, cercada de água por todos os lados. Mas ali, eu era uma pessoa cercada de pessoas. Eu poderia ser a terra fértil cercada de deserto ou o deserto envolto em terra fértil. Tudo seria uma questão de ponto de vista.
Geralmente, quando fazemos uma observação, nos referimos ao observado de uma maneira superficial, sugerindo um possível aprofundamento. Quando esse aprofundamento ocorre, ou estamos fazendo um estudo ou estamos criticando. Sem perceber, acabei deixando com que a tal linha, citada anteriormente, se rompesse. E pro lado da crítica.
Tudo começou quando a criança chata e inquieta arremessou longe o prendedor de cabelo, composto por uma pequena boneca cor-de-rosa, insuportavelmente brilhante, e um patuá de bolinhas nas sete cores do arco-íris. Por um instante, tive a insana idéia de que aquilo era uma alusão ao movimento gay. Larguei de lado essa teoria pensando na idade da fedelha. Cinco ou seis anos no máximo. Se ela tiver de brincar de médico com outra menina, na certa vai descobrir seu talento como ginecologista na adolescência, não na infância. O prendedor, que ficou desaparecido por alguns longos minutos, foi o pretexto perfeito que toda aquela gente precisava para se dispersar, afinal, não precisariam prestar tanta atenção no que ouviam, nem sequer no choro estridente da criança. Enquanto se abaixavam para procurar, aproveitavam para fazer comentários maliciosos, ou suspirar a impaciência, ou anunciar à parceira a escolha do motel para o qual iriam depois dali.

Terminadas as buscas, era hora de voltar o olhar para o Altar, que obviamente, ficava diante de todos nós. Inclusive da mulher que estava à minha frente, que tinha o cabelo impregnado por um cheiro adocicado, extremamente enjoativo, mas gostoso. Aquilo estava me lembrando os tempos de infância, quando sentia a garganta inflamar e corria de casa para o consultório médico, do consultório para a farmácia e da farmácia, de volta para a casa. Pra tomar antibiótico! É... Garganta inflamada, naquela época, era motivo de festa, já que o remédio tinha um sabor agradável e ainda era administrado naqueles copinhos que vêm em cima da tampa do frasco. O nome do medicamento? Amoxil, que tinha gosto e cheiro de morango. Que tinha o cheiro do cabelo da mulher. Outro dia me disseram que já existe uma versão genérica do Amoxil. Se não me engano, chama-se Amoxicilina, e parece ter o mesmo sabor e aroma da versão original. Se o efeito é o mesmo eu não sei, mas pelo menos agora garganta inflamada já cabe no bolso do típico cidadão brasileiro mão-de-vaca.
Chega de críticas. É hora de fazer a doação. A “cestinha” se aproxima, repleta das moedas lançadas por um médico de feições turco-afegãs. Talvez seja ele quem vá emitir o meu receituário médico, quando minha goela inflamar mais uma vez. Se ele sentiu o mesmo cheiro que eu, vai me mandar comer xampu.

Feliz Amor Novo

-Feliz Ano Novo!
-Por quê?
-Por quê o quê?
-Que você está me dizendo isso.
-Ué... Estamos nos primeiros segundos do ano novo. Queria que eu te desejasse "Feliz Páscoa"?
-Não mesmo. Queria apenas que você fosse sincero.
-Não entendi.
-Entendeu sim. Você nunca me desejou nem sequer um "feliz aniversário", agora não me venha com essa de ano novo.
-Nunca imaginei que você pudesse ser tão grosseiro.
-Não, eu não sou grosseiro. Só não gosto de hipocrisia. Não entendo isso... Chegam as festas de fim de ano e todo mundo fica bonzinho, numa cordialidade invejável... Por um acaso as portas do inferno só se abrem em dezembro?
-Que mau-humor! Brigou com o mundo? Foi mal amado?
-Você ainda não conhece meu mau-humor. Hoje estou apenas me cuidando para que eu não brigue com essa coisa que vocês chamam de mundo, com tudo o que tem dentro. Inclusive com você.
-Então confirma a segunda hipótese?
-Mal amado? (Risos) Eu nunca fui amado, se quer saber a verdade. Não sei como é estontear alguém.
-Acabou de descobrir.

(Pausa)

-Não entendi.
-Entendeu sim. Minha vez de falar.
-Ótimo! Bom que minha champagne não esquenta. Fale logo.
-Não seja irônico, por favor...
-Prossiga.
-Sabe? Eu já sofri tanto nessa vida...
-Momento sentimental.
-Sofri sim. Sofri por não saber amar. Ou amei demais sem saber o que era sofrer...
-E...?
-E agora estou tentando aprender alguma coisa. Aprender a sentir. Aprender a demonstrar.
-Ah, que lindo! Te desejo um feliz aprendizado.
-"Feliz"? Ora, por favor... Também não seja eufêmico. Você quis que eu fosse sincero com você. E estou sendo. Por favor, faça o mesmo comigo.
-Desculpe... Acho que a champagne começou a subir.
-Tive a mesma impressão. Desculpas aceitas.
-Obrigado.
-Não agradeça. Entenda.
-Tô tentando...
-Enfim... Acho que nunca vou aprender a amar. É melhor eu desistir.
-Não diga isso. Pelo que eu entendi, você já sabe.
-Engano seu. Sempre há alguma coisa errada. Sempre me machuco.
-Não.
-Não o quê?
-Não há nada de errado.
-Ah não?
-Não.
-Então porque eu te amo???

(Pausa)

-E me amar é errado?
-Moralmente falando, sim.
-Entendo... Mas não estamos falando de moral. Estamos falando de amor. E mesmo assim, não há nada de errado no seu jeito de amar.
-Se é assim, porque eu sofro tanto?
-Talvez por eu estar errado no meu jeito de te amar.

(Pausa)

-Você me ama?
-Como você nem pode imaginar.
-Porque não me disse antes?
-Porque às vezes nós somos obrigados a amar em silêncio. Porque eu não consigo ainda oferecer o que você merece. Porque eu não sei ser amado. Porque eu mal sei me amar. Não posso me entregar se eu sinto medo de não te corresponder.
-Mas o amor vem com o tempo.
-Então deixe que esse tempo diga a coisa certa a fazer. Deixe que ele guie meu coração. Nossos corações.
-O tempo...
-Eu sei que é difícil, mas o tempo é a única coisa que pode definir o que realmente sentimos um pelo outro.
-É o único que pode acabar com tudo.
-NÃO! É quem pode marcar o começo de uma vida nova. De duas vidas. De dois corações. Juntos.
-Quanto tempo o tempo leva pra passar?
-Já passou.
-Não entendi.
-Entendeu sim. Eu estou aqui.
-Olhe... Está chovendo...
-Não mude de assunto...
-Saia da chuva.
-Não. Venha até aqui me buscar.
-Se eu pegar um resfriado, a culpa é sua!
-(Risos) Não vai pegar. Me abraça?
-Claro...

(Pausa)

-Feliz Ano Novo...
-Por quê?
-Porque eu te amo...

Quando tristeza e felicidade se fundem

Manhã de quinta-feira, fria como todas as outras, mas não tão fria como o coração de todas as pessoas que insistem em me fazer acreditar que um dia tudo vai mudar. Visto meu jeans, calço meu AllStar e mais uma vez, minha rotina chata e monótona começa a despertar, lentamente, na medida em que vou bombardeando o chão com meus passos, como se me sentisse na pele de algum ciclope, ou um simples mortal pisoteando panfletos de políticos hipócritas. Me prostro na primeira carteira que vejo dentro da minha sala, sem me importar quem senta ali e tento escutar atentamente às não tão sábias palavras de um homem, que preza tanto a honestidade nas pessoas, que se esquece de ser honesto consigo mesmo. É assim todo dia. Ele fala, fala, e não fala nada. Nada faz sentido, nem sequer tenta fazer. Não sei se sinto raiva, ou pena, por ver alguém que não pode se referir a outro assunto alheio à matemática, ou provavelmente futebol, cerveja quente em cima da mesa e sua mulher gelada em baixo da terra. Acho que viuvez faz as pessoas ficarem burras. Ou no mínimo, um tanto estúpidas em relação ao modo de ver as coisas. Pelo menos, é isso que o tal senhor pseudo-culto me passa, a cada frase cuspida, babada e engasgada que sai de sua boca. Então vejo que minha caneta tem apenas um pouco de tinta e rabisco cada palavra indigerível no verso de uma prova, minha tão bem-sucedida prova, que depois de vista, apreciada e praticamente colocada num pedestal, não serve mais para nada, a não ser para ter o verso rabiscado. Então, um texto sem pé nem cabeça começa a surgir dali, e começa a me envolver tanto, e a chamar tanto a atenção do professor, que só me dou conta da força que punha na caneta e da curiosidade no olhar do homem, quando a tinta finalmente acaba. O mais estranho nessa história toda, é que a tinta acabou no meio de uma palavra que eu me recusava a escrever, mas acabei começando por não achar outra, que a substituísse: tristeza. Palavra essa que estava tentando se encaixar num contexto em que eu pudesse explicar, pra mim mesmo, que não há felicidade sem amor, nem amor sem medo, nem medo sem dor, nem dor sem desilusão, nem desilusão sem tristeza. Nem tristeza sem felicidade. Uma é inevitavelmente fundida com a outra, quando começa a aparecer o amor. O amor que traz felicidade, é o mesmo amor que traz medo e insegurança. É o amor que me deixa feliz por experimentar a sensação de ter a pessoa amada ao lado. E é o mesmo amor que me faz andar cabisbaixo pelas ruas, procurando alguma estrela caída no chão, enquanto leio novamente o que eu escrevi e vejo que não faz sentido. Apenas a “trist” fechando mais um parágrafo sem tinta que bastasse para completar a palavra, mas com o sinal de quem ainda tentou escrever. Chego em casa, com aquela prova rabiscada na mão, ligo a TV e nem reparo em que canal está. Apenas escuto vozes de crianças e bichos que falam, algo semelhante a uma tortura psicológica, que pela primeira vez me faz rir, não por ser engraçado ou bonitinho, mas por interpretar maliciosamente uma frase dita por algum dos personagens: “Você vai me comer?”. Desligo a TV, amasso a prova, coloco meu cd pra tocar, pulo a primeira música e escuto cannonball, deitado, com a cabeça debaixo do travesseiro e curtindo a minha feliz trist

O Domingo

8 da manhã.
Tenho a infelicidade de escutar meu telefone clamando por atenção, ou pedindo pra que meu braço se esticasse e o arremessasse contra a parede mais próxima. Felizmente não tive tal impulso e tentei não pensar que já estava na hora de acordar pra assistir a mais uma missa, às 9.
Inevitavelmente, entre os apitos insuportáveis do celular e a hora em que me levantei, fiquei imóvel, com o corpo pesado e amarrado à minha cama, com a alma vagando em torno de mim mesmo e os pensamentos fugindo do meu controle, insistindo em me trazer lembranças que eu até então julgava ter esquecido. E conforme o tempo ia passando, escutava cada vez mais alto o soar do despertador do telefone, de 5 em 5 minutos, mas já não podia mais fazê-lo parar. Meus braços estavam pesados demais para se esticarem mais uma vez.

8:45.
Uma voz mais forte que as vozes que me assombravam me chama pelo nome, num ar de impaciência. Eu escutava, mas não sabia de onde vinha, até que a mão fria de minha mãe me tocou os cabelos e a orelha e pela milionésima vez, sua voz chamou meu nome.

8:50.
Me levanto atônito, preocupado com o horário e começo a me trocar tão rápido, que não me lembro de qual roupa vesti, se as peças combinavam entre si ou mesmo se as meias que calcei faziam o par. Chego um pouco atrasado e mais uma vez fico sem lugar para me sentar. Pego o folheto e sigo em direção à escada, pra pegar algum degrau desocupado e cair sentado ali mesmo, de modo que eu pudesse esticar as pernas e encostar no degrau de cima. Começo a ler o folheto e dessa vez, o título me impressiona, me dá uma sensação diferente, de um vazio que “preencheria” meu dia, homônimo ao folheto: O Domingo. O tempo passa. Olho o relógio a cada segundo, tendo a impressão de que já se passara muito mais tempo do que os eternos cinco minutos de missa. O padre fala, a multidão canta em desafinação total com meus ouvidos, eu sussurro baixinho pra mim mesmo o que realmente eu queria naquele momento. Hora da comunhão. Sorrio feliz ao ver, no canto oposto ao que eu estava, minha tia, que prefiro chamar de mãe, mas nunca tive coragem o bastante para fazê-lo. Talvez por medo da reação dela. Talvez por medo da reação da minha mãe de verdade. Ando sem combinar um passo com o outro, devagar o bastante pra reparar que as pessoas me olhavam. Reparando no meu rosto, na minha expressão triste, ou no meu novo corte de cabelo. Observo as crianças ao meu redor, pedindo colo aos seus pais, que as carregam com um enorme sorriso no rosto. Um sorriso satisfeito, de quem será eternamente agradecido por poder sentir em seus braços, um filho seu. E me perguntei se um dia eu chegarei a sentir isso, mas não quis me responder. Não me respondi por medo da resposta. Preferi continuar andando, rumo às Hóstias, sem perceber que uma senhora, que caminhava contra mim, me hipnotizara com seu olhar cansado, um jeito disritmado de andar, e um sorriso no rosto, que mesmo parecendo sincero, sugeria apenas um disfarce pra toda a sua mágoa, todo o seu cansaço. Em poucos segundos, tive a impressão de ter passado horas vendo aquela cena, que terminou num estalo, ao sentir aquela velha senhora passando por mim. Foi o que me fez ver que eu era o próximo a comungar.
"Corpo de Cristo filho", foi o que ela, minha “tia-mãe” me disse, sorrindo belissimamente, não só com a boca, mas com o rosto todo. De um jeito que eu nunca tinha visto até hoje e acariciou leve e rapidamente a minha mão, que tremia junto à Hóstia, sem eu saber o por quê. Reergui a cabeça, tentei trocar em vão uns 2 ou 3 passos sem me sentir vazio por dentro. Ajoelho-me em frente ao Santíssimo e começo a rezar. Rezo por mim, rezo por todos, rezo pelo meu futuro, pelo nosso futuro. E o vazio então começa a se acabar. Finalizo a oração agradecendo pelas bênçãos derramadas sobre mim, sobre minha família, sobre meus amigos, sobre quem me faz bem e feliz. E refaço mais uma vez os meus pedidos, agora com muito mais força e muito mais fé do que antes. Peço pelas bênçãos. Peço para que o amor não se acabe, nunca.

"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém." Me sento no banco da capela, agora desocupado e já me vejo livre dos pensamentos torturantes, mas ainda sentindo algo estranho, que insistia em me apertar e me deixar sem fôlego. Sabia que era pecado me sentir tão desconfortável dentro daquele lugar. Se não era pecado, era no mínimo uma heresia disfarçada. O que dá na mesma.

9:55.
A missa acaba.
Volto para casa sem sentir o chão sobre os meus pés, nem o ar entrando nos meus pulmões. Alguns minutos depois me vejo sentado em uma mesa de bar, sozinho, esperando pela minha família, meus pais e minhas irmãs. Que não são meus pais, nem minhas irmãs de verdade. Peço uma garrafa de guaraná e sinto que aquilo está amargo, como se estivesse bebendo do mais puro e fétido fel. Como se meu péssimo astral tivesse se apoderado de tudo e de todos ao redor, inclusive daquela garrafa. As pessoas chegam. Por algumas horas esqueço do meu dia deprimente e até arrisco algumas gargalhadas. E vejo um senhor numa cadeira de rodas, com oitenta e poucos anos, vindo em nossa direção, acompanhado de uma senhora de setenta e tantos. Eles se sentam em nossa mesa e me coloco a prestar atenção nos dois. A senhora é dona de uma expressão apática, de certa forma, imponente sobre todos os outros da mesa. Mas sabíamos que ela era uma senhora forte, batalhadora e que apesar dos pesares, sustentava um louco amor pelo seu marido, agora caído sobre uma cadeira de rodas, um senhor de poucas palavras, expressão deprimida e voz baixa, como se quem tivesse medo da própria voz. Sim. Meus avós. Que tanto já me fizeram bem e hoje me deixam receoso em relação ao amanhã. A realidade dói. Dói saber que brevemente, eles podem já não estar mais aqui. E novamente, meu corpo pesa sobre a cadeira vermelha do bar e começo a me sentir mal. E esse sentimento se prolonga, me consome, me faz querer sair de órbita e nunca mais voltar. Volto pra casa empurrando meu avô na cadeira de rodas.
Vejo seu rosto cada vez mais magro, e noto que apesar de tudo, ele ainda mantém um olhar feliz, como se seus olhos, saltitantes até, revelassem que tudo valeu a pena. Ou que ele se sente alegre, por estar todo lambuzado de ChicaBon, como se tivesse voltado aos tempos de criança. Sorrio por achar a cena engraçada, mas mantenho a minha vontade de chorar, agora por cada boa recordação, cada bom momento que eu vivi ao lado dele e, se Deus quiser, muitos desses momentos ainda virão. Chego em casa. Tudo começa finalmente a mudar. Começo a me sentir bem, feliz. Lembro-me do céu de quatro horas da manhã, da benção derramada pelas estrelas sobre mim e mais uma pessoa, que me deixa alegre, que me dá forças pra levantar o olhar e seguir em frente. De uma pessoa que já ocupa meus pensamentos e meu coração há três semanas. E então tudo o que há de ruim dentro de mim, desaparece, deixando apenas uma sensação de saudade e de vontade de ter tal pessoa por perto, pra dar mais um abraço forte e demorado. Um abraço sincero, quente e gostoso. Sinto meu corpo leve novamente. Tão leve que eu seria capaz de flutuar. E dessa vez, me deixar levar pelos pensamentos bons que sempre existiram em mim, mas que hoje, nesse insuportável domingo, foram ofuscados pelo brilho negro de uma noite mal dormida.

6 da manhã.
Ao som de Lux Aeterna, sinto meus braços e pernas dormentes. Já é hora de dormir. Me preparo para deitar.

6:15.
Tenho a infelicidade de escutar meu telefone clamando por atenção... Felizmente, tudo está bem. Tomado por bons sentimentos e saudades.

Escola às 7.